corpo-colmeia onde poderia surgir o amor, mas são horas do mar se confundir com a vertigem do coração. de resto, já não se conseguem ler sinais da tua passagem, eclipsaram-se quando as mãos pousaram sobre a sombra do rosto ausente.
teu corpo paralisou no início da memória, não consigo lembrar-me de mim.
[...]
as mãos esgueiram-se para dentro da insónia. eis a noite da noite onde abro e folheio livros [...]. eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. e aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. [...] aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. [...] aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro. aceito a humildade de viver sozinho, a vergonha dos desejos insatisfeitos, a noite que me devora, aceito, aceito estas paredes, estes objectos, este sol, esta varanda, este mar, estes braços, estas mãos, este sexo, estes dedos, [...] aceito, esta dor que me morde, esta escrita, este coração, estas doenças, estes cabelos, a escassez da fala, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito, aceito, aceito esta janela, esta música de vísceras, esta faca, este sussurro, esta ausência, esta imagem desfocada, [...] este sismo, este grito, estas coxas sujas de esperma, esta comida, estes cigarros, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa, aceito, aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer, de fugir, de esperar, aceito, aceito a inutilidade de me reconhecer e de amar, a inutilidade dos dias, aceito, aceito o marulhar lodoso da alma, aceito não ter projectos nem querer construir uma pátria, aceito, aceito o vazio imenso das algibeiras, a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito o caos [...] aceito, aceito estes ossos, esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito a tristeza que me ofereces, [...] aceito nunca mais me lembrar de mim e viver pobre, aceito nunca mais te tocar [...], aceito, aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais.
Al Berto in O Medo, «20 de março».
Picture by Ana Tomás, M marks the spot.