quinta-feira, 20 de maio de 2010


corpo-colmeia onde poderia surgir o amor, mas são horas do mar se confundir com a vertigem do coração. de resto, já não se conseguem ler sinais da tua passagem, eclipsaram-se quando as mãos pousaram sobre a sombra do rosto ausente.
teu corpo paralisou no início da memória, não consigo lembrar-me de mim.
[...]
as mãos esgueiram-se para dentro da insónia. eis a noite da noite onde abro e folheio livros [...]. eis a noite onde esqueço a vida e cismo sobre aquilo que ainda não sonhei. e aceito como único presságio a melancolia aérea das açucenas. aceito como único consolo a desolação imensa dos teus braços. [...] aceito como único vício aquele cuja pele ainda não toquei. [...] aceito como única fala possível aquela que é susceptível de rasgar pulsos. aceito como único corpo aquele que não cresceu dos relógios do mundo. aceito, aceito como único sonho aquele espelho onde te reflectes e me encontro. aceito a humildade de viver sozinho, a vergonha dos desejos insatisfeitos, a noite que me devora, aceito, aceito estas paredes, estes objectos, este sol, esta varanda, este mar, estes braços, estas mãos, este sexo, estes dedos, [...] aceito, esta dor que me morde, esta escrita, este coração, estas doenças, estes cabelos, a escassez da fala, este silêncio cada dia maior e mais perturbador, aceito esta cadeira, este livro, este nome, estes olhos esmagados pela insónia, esta cama vazia, este frio, aceito, aceito, aceito esta janela, esta música de vísceras, esta faca, este sussurro, esta ausência, esta imagem desfocada, [...] este sismo, este grito, estas coxas sujas de esperma, esta comida, estes cigarros, estes cadernos rabiscados que não servem para grande coisa, aceito, aceito a inutilidade de viver, de morrer, de estar aqui, de me deslocar, de permanecer, de fugir, de esperar, aceito, aceito a inutilidade de me reconhecer e de amar, a inutilidade dos dias, aceito, aceito o marulhar lodoso da alma, aceito não ter projectos nem querer construir uma pátria, aceito, aceito o vazio imenso das algibeiras, a dor das mãos percorrendo um corpo, aceito o caos [...] aceito, aceito estes ossos, esta loucura que me assola lentamente, lentamente, aceito ficar louco, inconsciente, indefeso, aceito a tristeza que me ofereces, [...] aceito nunca mais me lembrar de mim e viver pobre, aceito nunca mais te tocar [...], aceito, aceito não possuir nada, não querer nada, aceito, aceito nunca mais aqui voltar, nunca mais.




Al Berto in O Medo, «20 de março».
Picture by Ana Tomás, M marks the spot.

terça-feira, 18 de maio de 2010


Mas o que é um poema
senão
um telescópio do desejo?



Ana Hatherly in as lágrimas do poeta.
Picture by Guido Argentini, Hiromi's hair on a golden mirror.


Não existimos mais que os nossos sonhos.


Teixeira de Pascoaes.
Picture by Nan Goldin, Vakat.

domingo, 16 de maio de 2010


I have longed to move away
From the hissing of the spent lie
And the old terrors' continual cry
Growing more terrible as the day
Goes over the hill into the deep sea;
I have longed to move away
From the repetition of salutes,
For there are ghosts in the air
And ghostly echoes on paper,
And the thunder of calls and notes.

I have longed to move away but am afraid;
Some life, yet unspent, might explode
Out of the old lie burning on the ground,
And, crackling into the air, leave me half-blind.



Dylan Thomas in I have longed to move away.
Painting by Barnett Newman, Achilles, 1952.