quinta-feira, 9 de outubro de 2008


[...] Alguma vez viste, nos jornais, aquelas fotografias de crianças, depois de terem bombardeado as suas cidades? Era assim. Tão grande como uma bomba. Mas por muito que fosse bombardeada, eu continuava de pé. Essa foi a minha desgraça: continuar de pé. Depois fiz 12, 13 anos, e comecei a ter mamas. Comecei a ter o período. De repente, passei a ser apenas um corpo que cercava a minha rata... Mas fica-te pela dança. Fecha todas as portas, de antes e depois, Coleman. Eu estou a topar-te, Coleman. Não estás a fechar as portas. Ainda conservas as fantasias do amor. Sabes uma coisa? Preciso, realmente, de um tipo mais velho do que tu. Que tenha perdido por completo todas essas tretas de merda do amor. És novo de mais para mim, Coleman. Olha para ti. Não passas de um rapazinho apaixonado pela professora de piano. Estás a prender-te a mim, Coleman, e és demasiado novo para uma mulher do meu género. Eu preciso de um homem muito mais velho. Creio que preciso de um homem com 100 anos, pelo menos. Não tens nenhum amigo de cadeira de rodas que possas apresentar-me? As cadeiras de rodas agradam-me: posso dançar e empurrar. Talvez tenhas um irmão mais velho. Repara em ti Coleman. A olhar-me com esses olhos de colegial. Por favor, telefona ao teu amigo mais velho, peço-te. Eu continuo a dançar, basta que lhe ligues. Quero falar com ele.
[...] Quando se prova, nunca mais se esquece. Ai, ai. Depois de duzentos e sessenta broches, quatrocentas quecas normais e cento e seis no cu, começa o namoro. Mas é mesmo assim que as coisas são. Quantas pessoas no mundo amaram antes de foder?
[...]
- Não pares - repete ela - Já ouvi essas palavras em qualquer lado. - Na verdade, raramente ouvira essa forma verbal sem ser antecedida por um «não». Não de um homem. Não muitas vezes de si mesma. - Sempre pensei que «não pares» era uma palavra só.
- E é. Continua a dançar.
- Então não a percas. Um homem e uma mulher num quarto. Nus. Temos tudo, não precisamos de mais nada. Não precisamos de amor. Não te rebaixes, não te tornes num idiota sentimental. Estás mortinho por isso, mas não o faças. Não percamos isto. Imagina, Coleman, imagina mantermos as coisas deste modo.
Ele nunca me viu dançar assim, nunca me ouviu falar assim. Há tanto tempo que eu não falava assim que julgava ter-me esquecido como era. Tanto tempo escondida. Ninguém me ouviu falar assim.[...]
- Imagina - diz -, vir todos os dias... e isto. A mulher que não quer ter tudo. A mulher que não quer ter nada.
Mas nunca quisera tanto ter alguma coisa.
[...]
- Não há ninguém como tu. Helena de Tróia.
- Helena de Lado Nenhum. Helena de Nada.


Philip Roth in A Mancha Humana.
Picture by Pavel Kiselev.

Porque o destino seguia-nos o rasto
Como um louco com uma navalha na mão.
Arsenii Tarkovskii in 8 Ícones.
Picture by Chris Anthony.

domingo, 28 de setembro de 2008


Porquê
se estar aqui
já é muito?

Por vezes
é mesmo de mais
sobretudo
quando não se ama já
e o coraçãp emudecido
pesa como pedra dentro
como morte dentro
do nosso corpo
agitado pela vida

Querer cumprir
querer produzir
[...]É isso o que tu queres de nós
terra
vida
alma?

É isso o prazo da existência
o seu interesse?

[...]
Efémera e contínua
caminho firme para o invisível


Ana Haterly in Rilkeana, "IX".
Picture by Michal Macku.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008


O erro foi ter ficado lá. Não foi para casa e agora detesta-o.
[...]
Ficou por causa da dança e de manhã está furiosa. Furiosa com ele. [...] Vir-se embora à noite: não há nada mais importante para uma rapariga como eu. Não tenho ideias claras a respeito de uma data de coisas, mas uma sei: ficar na manhã seguinte significa alguma coisa. [...] No curto espaço entre a casa e o carro podia ter sido morta, atingida por uma faísca, fulminada e morta, mas não fiquei: voltei para casa. Ficar na cama com ele a noite toda? A Lua enorme, a Terra inteira silenciosa, Lua e luar em todo o lado, e eu fiquei. Até um cego saberia encontrar o caminho para casa numa noite daquelas, mas eu não voltei para a minha. Não fui capaz. [...] Cedemos ambos à pior de todas as ideias. As prostitutas tinham-lhe dito, com a grande sabedoria das putas: «Os homens não te pagam para dormires com eles. Pagam-te para ires para casa.»


Philip Roth in A Mancha Humana.
Picture by Nan Goldin.

domingo, 17 de agosto de 2008


- Se Clinton lhe tivesse ido ao cu, talvez ela tivesse calado a boca. Bill Clinton não é o homem que dizem ser. Se a tivesse virado de barriga para baixo no Salão Oval e lhe tivesse ido ao cu, nada disto teria acontecido.
[...]
- Sabes, depois de chegar à Casa Branca o tipo deixou de dominar. Não podia. Também não dominou a Willey. Foi por isso que ela ficou fula com ele. Quando se tornou presidente perdeu todo o seu talento arkansiano típico para dominar mulheres. Enquanto foi procurador-geral e governador de um pequeno estado obscuro, dominar era perfeito para ele.
[...]
- O que acontece no Arkansas? Se um tipo cai quando ainda se encontra lá, não cai de muito alto.
- Exactamente. E calcula-se que tenha tara pelo cu. É uma tradição.
- Mas quando chega à Casa Branca, não pode dominar. E quando não pode dominar, Miss Willey vira-se contra ele, e Miss Monica vira-se contra ele. Teria garantido a lealdade dela se lhe fosse ao cu. O pacto devia ter sido esse. Isso tê-los-ia ligado. Mas não houve pacto.
- Bem, ela assustou-se. Sabes bem que esteve prestes a não dizer nada. Starr esmagou-a. Onze gajos na sala com ela naquele hotel, já imaginaste? A massacrá-la? Foi uma geraldina. Uma violação colectiva encenada por Starr naquele hotel.
- Isso é verdade. Mas ela já andava a falar com Linda Tripp.
- Ah, sim.
- Anadava a falar com toda a gente. Pertence àquela cultura idiota do blá-blá-blá. A esta geração que se orgulha da sua superficialidade. A sinceridade é tudo. Sincera e vazia, totalmente vazia. A sinceridade que dispara em todas as direcções. A sinceridade que é pior do que a falsidade e a inocência que é pior que a corrupção. Toda a rapacidade oculta sob o manto da sinceridade. E do jargão. Aquele vocanbulário maravilhoso de todos eles, e em que parecem acreditar, a respeito da «falta de mérito próprio», quando na realidade estão sempre convencidos que têm direito a tudo. Chamam carinho ao descaramento e mascaram a desumanidade de perda de «auto-estima». Hitler também tinha falta de auto-estima. Esse era o problema dele. É uma farsa, o que esses miúdos armaram. A hiperdramatização das emoções mais insignificantes. Relação. A minha relação. Clarificar a minha relação. Quando abrem a boca apetece-me amarinhar pelas paredes. Toda a linguagem deles é um somatório da estupidez dos últimos quarenta anos. [...]
- [...] Ele podia topá-la. Se não é capaz de topar Monica Lewinsky, como pode topar Sadam Hussein? Se o tipo não é capaz de topar e cortar as voltas a Monica Lewinsky, não devia ser presidente. Isso é fundamento genuíno para impugnação. Mas, insisto, ele topou. Ele topou tudo. Não acredito que tenha ficado muito tempo hipnotizado com a história da carochinha do seu disfarce. Claro que viu que ela era absulutamente corrupta e absolutamente inocente. A extrema inocência era a corrupção: era a sua corrupção, a sua loucura e a sua astúcia. [...] Mas o que não percebeu foi que tinha de lhe ir ao cu. Porquê? Para a calar. Estranho comportamento o do nosso presidente. Foi a primeira coisa que ela lhe mostrou. Pôs-lha à frente do nariz. Ofereceu-lha. E ele não fez nada. Não entendo este tipo. Se lhe tivesse ido ao cu, duvido que ela tivesse falado com Linda Tripp. Porque não quereria falar a esse respeito.
[...]
- É pelo cu que se gera a lealdade
- Não sei se isso a teria calado. Duvido que seja humanamente possível calá-la. Não estamos perante um caso de Garganta Funda, mas sim de Boca Escancarada.

Philip Roth in A Mancha Humana.
Picture by Robert Doisneau, Criaturas de sonho, 1952.

sábado, 16 de agosto de 2008


Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

[...]
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver àrvores ao fim da rua

É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
[...]

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
[...] e através da vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora

Ruy Belo in O Problema da Habitação, "VII A Mão no Arado".
Picture by Duane Michals, Joseph Cornell, 1970.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

[...] por instantes foi feliz no sono, mas ao acordar sentiu-se todo borrado de caca de pássaros.

Gabriel Garcia Márquez in Crónica de uma Morte Anunciada.

sexta-feira, 28 de março de 2008

Text & Picture by Jenny Holzer.
Pó cheira a raio de sol,
mel bravo à liberdade,
boca de moça à violeta,
e ouro não cheira a nada.
A reseda cheira à água,
amor à maçã rescende,
mas agora já sabemos -
só o sangue cheira a sangue...
Anna Akhmátova, 1943.
Picture by Chris Anthony.

sábado, 26 de janeiro de 2008


A falsidade é quase sempre um meio certo de triunfar; aquele que a possui adquire necessariamente uma espécie de prioridade sobre aquele com quem tem comércio ou correspondência; fazendo-se admirar com um exterior falso, convence e, a partir desse momento, passa a triunfar. Mesmo que eu me aperceba de que fui enganado, a ninguém devo culpar a não ser a mim e aquele que conseguiu intrujar-me procedeu tanto melhor quanto eu, por orgulho, me não irei lamentar; a sua superioridade em relação a mim será sempre grande; terá sempre razão quando eu nunca a tenho; avançará enquanto eu nada sou; há-de enriquecer enquanto eu me arruíno; sempre acima de mim, não tardará a cativar a opinião pública; nessa altura, por mais que eu o queira inculpar, ninguém sequer me ouvirá. Entreguemo-nos portanto, ousada e incessantemente, à mais insigne falsidade; olhemo-la como chave de todas as graças, de todos os favores, de todas as boas reputações, de todas as riquezas e consolemo-nos calmamente do desgosto de intrujar apenas pelo prazer de sermos malandros.

Marquis de Sade in "Terceiro Diálogo", A Filosofia na Alcova.
t-shirt by Jenny Holzer.